sexta-feira, dezembro 31, 2010

Durante as férias, acordar cedo nem sempre é tarefa muito simples e não raro requer estímulo extraordinário. Recorri, à maneira de reflexo elementar mais primitivo, à programação do sesctv que mais das vezes privilegia as artes plásticas ou a dança. E lá estava no programa O Mundo da Arte um tal de Newton Mesquita sobre quem nunca ouvira falar. Precipitei-me em prevenções, pois àquela hora da manhã estava pouco disposto aos conceitos que justificam a arte moderna. Dá muito trabalho, pensei, e, ademais, exige uma condescendência que reputo nociva ao progresso humano. Mas, que surpresa! Era arte genuína, honesta e sem subterfúgios mirabolantes; e o que digo poderia soar reacionário, não fossem as reproduções cansativas e estéreis que pululam incansáveis por aí. Certamente não é o caso da obra desse paulistano que empresta à paisagem quotidiana as cores inusitadas com as quais ilumina ou desvela o pormenor mais comezinho. Gostei sobretudo das imperfeições (marcas das pinceladas, cores improváveis, etc.) premeditadas, registro de autenticidade percebido conforme nos aproximamos da tela.

domingo, novembro 21, 2010

Semana passada, assisti ao espetáculo Lanternas Vermelhas, do magnífico Balé Nacional da China, o que me fez tomar algumas decisões. Uma delas, única a que dedicarei comentário aqui, diz respeito aos eventos amadores. Não os assistirei mais, pelo menos àqueles produzidos e executados por companhias que se autointitulam amadoras. Não, isso é preguiça disfarçada de honestidade, de tal modo a transigência deve ter limite se se deseja o franco progresso ao mundo. O amadorismo é estado transitório, que precede o pleno domínio da técnica e da compreensão da arte, o que só o estudo devotado e o indispensável talento podem garantir. Pensar em atividade amadora e indiferente ao aprimoramento necessário à manifestação das potências inesgotáveis da arte, da grande arte, seria um retrocesso aos arcanos de ritos ancestrais, assombrados pela ingerência estéril que se satisfaz com a mera reprodução estagnada. O destino da arte está com a função que a legitima qual adjutório ao refinamento humano e é imperioso que cada um auxilie no seu aperfeiçoamento, caso contrário, penso, legaremos às gerações futuras o convívio lastimável com práticas assustadoramente primitivas que nos detêm na precariedade animal.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Lanternas Vermelhas. Ballet Nacional da China, direção de Zhang Yimou, de 10 a 14 de novembro, Teatro Bradesco, SP.

sábado, novembro 06, 2010


SUPAKITCH & KORALIE - VÄRLDSKULTUR MUSEET GÖTEBORG A arte é expressão de legítima humanidade em que o homem exercita livremente a faculdade criadora, tornado-se, enfim, deus de seu próprio universo.

quinta-feira, outubro 28, 2010

Anotação atribuída a um suposto J. Dubois, escrita no final do capítulo IV de uma edição de L`étranger, de Camus, Éditions Gallimard; recolhida e posta ao vernáculo por E. Basile.
Compartilho da mesma verdade de uma pedra e a leitura não me deixou mais sábio. Tampouco os títulos aqui amarrotados no bolso asseguram-me a sobrevivência da alma, conquanto me certifiquem qualidades surpreendentemente inúteis. Velho, não temo o homem, mas me constranjo sob o universo indiferente e ainda incompreensível. Quem de Euclides a Heisenberg se atreveu a alguma certeza? Não, o conhecimento humano a ignora, talvez porque impossível aos limites de um cérebro. A existência, pois, afigura-se ensaio inexaurível ao perfeccionista, quando não uma pantomima mal acabada e enfadonha ao transigente. Morrerei em breve e o cansaço será o consolo mais honesto. Cessarei encorajado pelas forças que me deixarão furtivamente, a pedir silêncio aos que ainda deliram com a imortalidade do corpo.

domingo, outubro 24, 2010

Um sonho. Ouvi alguém mencionar... seria uma quinta-feira e todos pareciam sair pelas ruas como se a espera de algo que certamente viria do céu. Alguns corriam em alegre euforia, outros vagavam com olhar absorto e sereno. Eu simplesmente acompanhava os acontecimentos, coagido por estranha força que me impedia os olhos cerrados ou a mente embotada, de tal maneira tudo desfilava incrível, pois sem o reflexo sensor da vigília. Assustaram-me os cavalos de pelagens ligeiramente azuis que corriam pelas ruas com seus olhos incandescentes a lembrar a danação prometida. Homens atiravam-se dos campanários, enquanto outros calculavam em ábacos rendimentos de ancestrais virtudes. A fé era compreendida sem o escândalo e a consciência não se deixava ofuscar pela túnica alva, nem constranger ante o hábito austero. As insatisfações estavam expostas e o impostor convertia-se insignificante, humilhado. Um sujeito oblongo ofereceu-me um automóvel, quis vendê-lo com a garantia de que o novo modelo não deixaria transparecer aos outros qualquer descontentamento pessoal de que porventura padecesse. Adiante, um grupo de macacos murmurava nostálgico seu tempo de humanidade. Tiranos de primitiva ordem exigiam amor dos que ali passavam, prometendo a quem os correspondesse escravidão e dor. Vi ainda um filho anunciar ao cuidado materno a verdade que chegaria indubitável e apócrifa. Quis gritar, mas também me era vedada a ânsia. Segurei um velho livro como se para sustentar o corpo cansado em pleno ar, no que as suas folhas converteram-se em cinzas, restando em mãos admiradas uma única e derradeira, onde e com remota caligrafia lia-se “amor”.

terça-feira, outubro 12, 2010


¡Chica, deja esto antes que te atrapen!(La Prensa de La Rioja, abril, 2002)

domingo, outubro 10, 2010


A semelhança era evidente e disse para mim mesmo: eis aí o Papai Noel. Para a minha eterna surpresa, pois não me entrego fácil à perfunctória evidência, acolheu em sua candidatura a ilustre alcunha. Bem assim o reencontrava, agora a confirmar minha irreverente assertiva, em horário eleitoral tão exíguo para sua ínclita figura. Não foi eleito, se bem conquistou um número de eleitores que superava a expectativa mais otimista, contando votos que ultrapassavam mesmo aqueles mais experimentados ao pleito. Fiquei algo desapontado, confesso, pois nutria desejo íntimo de tê-lo meu representante; e quem melhor senão o próprio Papai Noel?!, lamentava incompreensivo. Pressenti, por fração absurda de instante, a infância que emergia com seus caprichos insólitos. Infância simples e desorientada, que confia a própria vida ao primeiro estranho que lhe aparece amistoso. Será este desconhecido a fortaleza que manterá o ser frágil e sem autonomia longe do perigo sorrateiro; quem proverá à inabilidade dos primeiros anos; ele, pai zeloso, cicerone pronto ao auxílio nas primeiras incursões pela noite inconsciente, e de quem por fim nos desvencilhamos ao raiar do dia. Mas antes que sobrevenham as indeclináveis injunções naturais, muito é feito para que o arquétipo benevolente e protetor nos impinja a nódoa indelével da dependência que, assombrada pelo temor do desamparo, dá causa ao comportamento imaturo e leviano. Então, seguem alguns habituados no excesso ou ressentidos da ausência, a reclamar a presença paterna agora difusa no universo restrito de suas realizações. Por conta disso, apenas suponho, elege-se não o administrador, mas o pai, ainda que menos apto ao governo, pois único capaz de atender às extravagâncias de uma sociedade que se revela imatura, qual a criança indefesa, isenta de responsabilidades por desconhecer as razões que motivam a própria existência. Talvez não por diversos motivos também se crê na personalidade quer-se tão humana, conquanto munida de atributos incríveis, que cuida de cada indivíduo como se pessoalmente, numa prática incessante e subversora de leis que precedem a raça humana. De qualquer modo, a solução parece mais uma vez pertencer ao tempo e sua fábrica de monstros e anjos. Até o Natal!

sábado, outubro 02, 2010

O anencéfalo
Teria nascido há trinta anos, sob o céu estrelado de uma noite morna nos confins do Mato Grosso do Sul. Chegou em silêncio, sem o choro que certifica a vida, e não fosse os olhos já abertos e o fôlego regular o julgariam morto. Mais tarde, teria um médico diagnosticado ao discreto horror dos pais uma criança sem cérebro. Cresceu, não obstante a expectativa contrária e adepta à morte iminente. Disse sua primeira palavra aos quinze anos. “Peixe”, ouviu sua mãe atônita o sussurro milagroso. Dois anos passaram e começava a mencionar algo inteligível, se bem que embaçado de mistério. A partir dos vinte e dois anos, começou a proferir diagnósticos confusos, conquanto desconcertantes, pois, ao que parecia, era-lhe possível conhecer a intimidade alheia. Não demorou e sabia das linhas que compunham as plantas dos pés de quem se dispunha ante ao seu olhar neutro. Revelava com palavras cirúrgicas os males da alma que o corpo aparentemente sadio escondia. Predizia a sorte e o infortúnio, as promessas de vida plena, a morte inarredável e insidiosa. Multidões passaram a visitá-lo em busca da verdade dita sem arrodeios ou prevenções. Alguns o evitavam receosos, outros ao ouvir seu nome faziam sinal da cruz e arrematavam um “valei-me!”. Ao fim da tarde e já cansado de atender a tantas pessoas, concluía as atividades diárias com o pedido costumeiro, quando era finalmente conduzido em sua cadeira de rodas e deixado diante da TV. Um dia, sem querer justificar-se, mas como se a empreender rara cortesia, esclareceu-me de seu hábito vespertino e da necessidade de manter a cabeça vazia de coisa alguma. Morreria poucos anos depois, consumido por complicações cardíacas.

terça-feira, setembro 28, 2010

Sobre o belo
Mais um dia nublado, e mesmo sob o céu cinzento as pessoas contorcem a face, não sei se aborrecidas - agora não mais pelo sol abrasador, mas talvez pela chuva que ameaça -, ou se apenas expressam o hábito que o tempo modela e, por fim, confere imunidade à consciência.
De fato, elas não parecem andar, mas se arrastam com o corpo desajeitado a claudicar passos que nem longe distantes daqueles ensaiados na primeira infância. Essas pessoas esqueceram-se belas algum dia e agora se limitam a suportar a existência, carregando consigo o corpo em franca corrupção, rumo à degenerescência infalível. Onde a beleza? Onde o gesto delicado de quem se conhece, cônscio de suas limitações, se bem que ansioso por superá-las. Onde os olhos altivos de ambições ao benigno progresso?
Há tristeza em alguns, preocupação em muitos e nos que restam o olhar vago, volúvel, a que se costuma atribuir alegria.
Penso no belo, ainda que simples, radiante. Pois é tal estado ou vibração radiosa que denuncia a genuína beleza. Por mais feia que a criatura pareça aos olhos corrompidos pela miopia vulgar, aquela intimamente conciliada e, portanto, em harmonia consigo mesma, irradia algo de arrebatador aos experimentados na observação humana, surpreendendo-os confusos e extasiados diante do aparentemente insondável.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Fui, por esses dias, questionado sobre o que faria às vésperas do fim do mundo. Após algum instante, a única coisa que me ocorreu foi o mar. Disseram-me que iriam ao cinema, mas acho improvável: seria uma despedida muito dolorosa, pensando melhor. Passaria meus últimos instantes no planeta diante do mar, imenso e interminável como o universo que me esperava. Só ao mar permitiria presenciar a minha provável agonia de ser ainda ignorante e limitado, o mar a que tudo acolhe e transmuta, indiferente à mesquinharia humana.
Oração: que Miles Davis e Dizzy Gillespie estejam entre os anjos do apocalipse.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Excerto recolhido de velha dedicatória escrita no frontispício de uma edição espanhola de Os Irmãos Karamazov, oferecida à senhorita T.
Amor! Confesso a estranheza do vocativo a que tantos devotam à dor. Então, não seria amor, pois não me aflige o peito, tampouco o sono me abandona o leito, por te adivinhar, quem sabe, no sonho acolhedor. E se te penso, quede a angústia, o pavor que a perda assola? O golpe sorrateiro, onde?, que consome dia afora. Talvez, não ame, enfim, e dócil apenas abrace o destino, seguro de que o próximo passo, eis que não mais sozinho, será o mais importante, pois ao teu lado.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Às vezes, penso na humanidade. Penso nessa enorme família, distante, algo que muita vez imponderável, mas que está lá, aqui, em todo lugar, apesar da não rara indiferença. Às vezes, penso nas crianças que não podem, que não têm, enquanto por uma insignificante fração de tempo não estou pensando em mim e nos problemas que crio não sem alguma arte. Cansado de mim, às vezes, volto a atenção para ela, e com que surpresa me esqueço e me reencontro, já outro, não mais a remoer mesquinharias, porquanto parte de algo maior. Encontro, assim, a importância que me diz respeito no outro, sem o qual me converteria, após a egolatria desoladora, em nada. Penso, quando de mim esqueço, o que não tenho feito, o auxílio omitido, o horror que me grita ao ouvido, ajude-me!, ajude-me! E quase que lamento, não fossem as injunções do progresso que me alijam da condição de vítima, por um instante. Às vezes, dela sinto profunda e intensa saudade. Onde a humanidade da qual sou filho e irmão? E quase choro para finalmente esquecê-la. Quem sabe um dia... não a abrace?, não a conforte para a minha paz?, num gesto simples e silente.

sábado, agosto 28, 2010

Recordo-me. Era talvez um sábado, pois me recordo da atmosfera indolente daquela tarde abafada. Costumava sair para encontrar os amigos, os poucos que se dispunham aos debates insólitos, afiançados em vestígios de uma filosofia ingênua, mas inquieta. Fui encontrá-lo em frente ao prédio onde eu morava, próximo a uma subestação de energia. Dentro de seu carro, M. esperava-me absorto em cogitações intransponíveis à superficial curiosidade. Tinha seus olhos marejados e, precipitando algo convencional, supus a autopiedade que segue às desilusões amorosas. Aspirante a poeta, de quando em vez, M. inventava interditos, conflitos emuladores da vida, dizia, com o que atormentava de incertezas a união mais promissora. Perguntei-lhe da indisfarçável comoção e ainda sob estranho êxtase, apontou para a torre monumental e bizarra que sustentava diversos e ruidosos cabos de alta tensão. Ele, para o meu espanto, havia encontrado beleza naquilo que, para mim, era abominável. Sim, a beleza é força arrebatadora e, talvez, transcendental à mera aparência tenazmente defendida por Hípias, mas que ora se conciliava com o ideal estéril e incorruptível que prevalece às circunstâncias. Por um instante, temi a cegueira que acomete a canalha, Deus me perdoe a arrogância juvenil, pois teimava insensível às perturbações elaboradas no íntimo de quem a identifica, a beleza imanente, conhecida do sábio, invisível ao tolo.
(A T.)

segunda-feira, agosto 23, 2010


Cloud Gate Dance Theater, de 2 a 5/10, na Temporada 2010 de Dança do Teatro Alfa (SP)!

domingo, agosto 22, 2010

Cândida
Às vezes, tenho por mim em terra insólita, ilha incansavelmente assediada pelas vagas de um mar morto, profundo e inculto que, se não violento, assola por misterioso hábito o penedo mais seguro. Mais raramente, vê-se surgir um fanal, cuja poderosa luz direcionada para o alto parece nos conduzir o pensamento a peculiares virtudes. Segui aquela luz que por um instante resgatava-me da influência fastidiosa do burburinho secular e me deixei, fausto, em saudoso assento. Os personagens eram apresentados pela voz impostada de um empertigado jovem inglês, conforme se concluía pensar, a quem condescendia verdade em cada palavra, pois era naquilo que eu nutria fé, a despeito de um refletor que caiu diante do comentário afoito, treinado às custas da ilusória perfeição televisiva. Confesso, e sem algum pudor, que, até aquele momento, de Bernard Shaw só conhecia esparsas anotações biográficas, colhidas, aliás, em fontes de reputação duvidosa. Extasiado, presenciava, a cada fala articulada por aqueles atores notáveis, a perspicácia invulgar que sugere a verdade sem dela reclamar posse. Era o gênio, a mãe quem se utiliza da astúcia e de simulacros pueris para alimentar o filho rebelde. Assim, era nutrido, e dissecado com cada personagem, num jogo em que importa a maior quantidade de virtudes e defeitos identificados e, finalmente, assumidos; pois aí, e não por acaso, identificamo-nos com esse ou aquele autor, como a esse ou aquele terapeuta. Cheguei a pensar a platéia em descomunal divã, se bem que rindo, rindo muito, talvez, de si mesma.
Fui assistir à peça de que falei, de Bernard Shaw, adorei e até agora algo me comove, como se faz comover o ser humano que presencia a luminosa inteligência, não pela vã prepotência de si mesmo, mas por entender algo divino que se manifesta indubitável no outro. Desejei a tua presença ali, naquele teatro, ora rutilante por cada gesto confiado à memória, pelas palavras que surpreendiam incomum utilidade; como quis teu sorriso, talvez a tua satisfação de reencontrar a humanidade tão nossa, recolhida nos porões da indulgência diária, onde alimentamos uma paciência monstruosa.

domingo, agosto 15, 2010


Shakespeare: o mundo é um palco: uma biografia, Cia. das Letras, de Bill Bryson, é, antes, uma esforçada crônica da Inglaterra elisabetana que um tratado biográfico. O próprio autor em vários momentos parece se escusar pela empresa modesta, quando alega, por exemplo, a escassez de documentos que auxiliem a elucidação da vida do poeta. De tal modo, há um vasto número de curiosas observações de natureza histórica que, aliadas a outras tantas conjecturas, ajudam a tecer o contexto em que Shakespeare vivia, sem, contudo, desvendar sua intimidade.
Ficamos sabendo dos excessos a que eram submetidos os estudantes londrinos, que tinham que decorar as mais de 150 maneiras diferentes de se dizer “obrigado por sua carta”, em latim. Conhecemos as excêntricas golas picadilly, a dieta de pão preto e queijo seguida pela frugalidade inglesa do século XVII, ou, ainda, do bizarro clareamento de pele provocado pelo composto de enxofre e chumbo que as mulheres passavam no corpo como medida de embelezamento. Enfim, é mais um livro de cansativas especulações, como, aliás, qualquer outra obra que pretenda discorrer sobre a vida do bardo, quem parece haver, premeditadamente(!), cuidado de se preservar da posteridade implacável. Quem sabe...? Seja como for, ficamos com o melhor, e o que diz ao artista, sem dúvida, é sua arte.

Recomendações do sr. Iván Ivánitch à sra. Mária Pietróvna

Daria por ela o meu reino, o cavalo e 1/4 de meu fígado.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Bill Evans (piano), Eddie Gomez (contrabaixo) e Alex Riel (bateria).

Quem já teve a oportunidade de assistir a performance de um conjunto jazzístico, talvez também haja observado a satisfação que parece fluir de cada músico que, nesse caso, deixa de lado a máscara austera das orquestras de ofício, para se dedicarem de alma a um prazer, ainda que tão intimamente sentido, contagiante.

Se a verdade é atributo da música, começaria a identificá-la no trio de jazz, por exemplo, pois que seu bom desempenho não prescinde da cumplicidade avessa à dissimulação comezinha.

Não se iludam os precipitados que torcem o bico à eventual audição do jazz, pois é música que não vai ao coração sem antes passar (e repassar) pelo cérebro.

domingo, agosto 08, 2010

Justificam alguns a inapetência pela leitura, arrimados no utilitarismo simplório, numa atitude estranha aos fins mais genuínos que a arte inspira, atinentes ao burilamento íntimo de quem a experimenta. Assim, negam-se a ler qualquer linha os cobiçosos de lucros intangíveis, servindo-se de medidas impraticáveis à aferição das virtudes conquistadas que não se confundem com os adornos ou as contingências.
A leitura é exercício que atende ao desejo, ainda que irrefletido, do conhecimento de si mesmo. Cada personagem elaborado pelo autor preferido é ser cujos aspectos são passíveis de identidade, de modo a expressar, dos gestos ao pensamento, características peculiares a cada leitor que se reconhece na personalidade ficcional. Assim, o hábito de ler, a que se dedica sem esforço o leitor contumaz, é exame silente de sua (do leitor) própria personalidade, decifrada ao longo do fluxo narrativo, o que projeta a leitura habitual do modesto contexto das atividades lúdicas ao excepcional universo dos recursos emuladores do progresso humano.
Porque, se as almas não morrem, é bom que em suas despedidas não haja ênfase.
(Jorge Luis Borges)

quarta-feira, agosto 04, 2010


Terra em Transe (1965) e o triunfo da beleza.
Em um filme, pouco importa a história, contanto quem a narre o faça sob os auspícios da melhor arte. Esta confiará ao artista comprometido os recessos da beleza, corolário do ato criador, cuja obra ignora o tempo, atravessando-o incólume, qual verdade imorredoura.
(Atentem para a atuação desconcertante de Paulo Autran, como o senador no auge do desvario, prestes à coroa [napoleônica?] que reluz as ambições de um poder impossível porque insaciável).
To be cotinue...

domingo, agosto 01, 2010


Eu me recordo de absolutamente tudo, jovem. É a minha maldição. É uma das maiores maldições infligidas ao homem: a memória. (Sr. Leland, melhor amigo de Charles Foster Kane).
Epílogo
Envelhecer é o recolhimento compulsório e paulatino das atividades corpóreas que cedem espaço à plenitude mental, processo pelo que o indivíduo é naturalmente conduzido à autoavaliação, daí as freqüentes digressões nostálgicas. À sorte do juízo que acompanha cada reminiscência, encontrar-se-á o velho em relativa serenidade, pois satisfeito de ricas experiências, ou em crescente aflição e deprimido, haja a repentina consciência do tempo negligenciado.
(Sobre o tema, assistam ao insular La Ventana [2008], de Carlos Sorín).

quarta-feira, julho 28, 2010

Stella
Já se foram alguns anos e hoje percebo o tempo que passa solene e indiferente às minhas urgências. Não mais o negligencio, não como outrora, de modo raciono as horas com os atalhos da experiência.
Ontem mesmo, fui à locadora, sim, ainda alugo filmes, e dentre estes me chegaram às mãos o anglo-australiano Sherlock Holmes, de Guy Ritchie, e outro, agora francês, Stella, de Sylvie Verheyde. Detive-me por algum minuto e, servindo-me do mencionado critério de valorização do tempo, levei o último. Julguei a melhor escolha e, precipitando um veredicto que dispensa melhor avaliação, calculo insuperável. Stella é uma narrativa sobre descobertas, e aqui sob o prisma extraordinariamente lúcido de uma garota que, aos 11 anos, surpreende com a inteligência de si mesma. Ela se reconhece diferente dos outros – princípio para o autoconhecimento –, preferindo a distância vigilante ao movimento gregário primitivo que remonta das agremiações convencionais aos remotos coacervados. Não que eu acredite seja o homem destinado à solidão, absolutamente, porquanto a entenda qual estágio natural, por mais dorido, que precede a consciência, primeiramente de si, para só então integrar-se ao todo.
Mas voltando à história de descobertas que sempre envolvem escolhas, há algo que chamo a atenção quanto a estas, as escolhas que se impõem com maior ou menor força no curso da existência, e aqui, nas vidas de Stella, e de suas amigas, Gladys e Geneviève. Stella é quem, sem dúvida, experimenta as decisões que precedem as mudanças mais importantes. Filha de pais boêmios e vivendo em cima de um bar na periferia parisiense, tem a oportunidade de estudar em um liceu conceituado, onde faz amizade com Gladys, primeira aluna da classe, filha de intelectuais, leitora de Balzac e de Coqueteau. Gladys, como dizem os mais velhos, estaria de “vida ganha”, haja todos os recursos e circunstâncias favoráveis ao seu progresso. Diversamente, Geneviève, quem, não bastasse a sorte de pais alcoólatras e desempregados, de um irmão aleijado e outra retardada, sofre o anátema infligido pelo preconceito miserável e desumano dos moradores de seu pequeno vilarejo. Entre as duas, Stella a contemplar a glória e a derrota, conquanto ainda não influam em sua infância os juízos que elegem as conveniências ocas em detrimento à afinidade de coeur. E é com a celebração dessa afinidade, dessa sintonia expressa em amizade fiel, que o filme vai encerrando, numa cena de confessa nostalgia, à maneira das reminiscências fundamentais que o tempo tenta, mas não apaga.

segunda-feira, julho 26, 2010

Então, vendo a mulher que o fruto da árvore era bom para se comer, de agradável aspecto e mui apropriado para dar entendimento, tomou dele, comeu, e o apresentou ao seu marido, que comeu igualmente. (Gen 3, 6)
Timeo hominem unius libri
(São Tomás de Aquino)
Adão! Não sobe aí não!
(in Guillaume d`Angleterre)

domingo, julho 25, 2010


Dalí, o Salvador, também realizou experiências de moving portrait, recurso inédito à época, com o que fez registrar o lançamento para o alto, em sentidos diversos e ao mesmo tempo, de um texugo, de um orictéropo e de um babuíno (dócil?). A película perdeu-se num pequeno incêndio.

sábado, julho 24, 2010

O silêncio é a música cósmica que nos orienta os mais delicados sentidos, na busca das recônditas razões da existência.
Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, 1989.

- Uropigial, professora... uropigial fica na cloaca.
Acidente aéreo

Caiu que nem deu tempo...!
(Anwander Brites; autônomo, 28)

Negócio é no chão, aqui, que passarinho é que vôa.
(Crivaldo Watson de Abel; aposentado, 72)

Foi ziiiim, tactactac, catabruum! Feio mesmo.
(Helena Sandoval; estudante, 16)

sexta-feira, julho 23, 2010

Ontem, ao terminar uma leitura de Édipo Rei, talvez a obra mais conhecida de Sófocles (496 a C.-406 aC.), não pude me deter em pensar naqueles desmemoriados que se precipitam a eleger o passado como a melhor época, tempo imune aos problemas que hoje pululam e afligem o pior dos momentos. Parece algo natural a todas as pessoas, não só às que gozam de uma velhice corrompida pela degenerescência senil, mas o jovem diante da geração sucessora também se faz ressentir, e arrisca as mais levianas comparações. Esquecidos? Talvez sim, esquecidos de sua própria história, mas, principalmente, ignorantes dos percalços sofridos pela humanidade ao longo de sua trajetória (evolutiva), no decorrer de nem tão longínquos 100 mil anos. Vide Édipo, rei de Tebas, que ao descobrir o equívoco que o fez matar seu pai e desposar sua mãe, desesperou-se a ponto de aniquilar os próprios olhos, na esperança de não mais divisar o opróbrio terrível. História grave que, no entanto, não nos surpreenderia, hoje, em algum jornal ordinário na banca da esquina. E mais uma vez ouviríamos o velho resmungo saudosista de reverência a um passado recortado, uma metonímia de razões inventadas, pois a existência é mesmo uma invenção, não apenas individual, mas também coletiva. Enxergamos o que queremos, seja por esforço e pela busca do conhecimento que revela, seja pelo comodismo que se contenta com as ofertas triviais e condicionantes.
Quantos se fazem cegos, à cópia do rei tebano, para não arrostarem o horror da própria imagen! Quantos, cansados de si ou adivinhando o pior que o orgulho refuga, não fecham os olhos para a análise fecunda e habilitadora de seu “eu” mais íntimo, e por isso arredio, ao passo que preferem tatear na escuridão inconsciente os recantos macios do repouso imerecido.
A essa altura, a lembrança oportuna da parábola dos cegos, expressada com incomum fidelidade nas tintas de Brueghel, surge à maneira de profecia que, infalível, alcança o tempo naturalmente inclinado à fuga. O passado pertence a Édipo, ao incorrigível, e o presente aos dramas do agora. Entre este e aquele, pois, o barranco insidioso nos espera distraídos.


domingo, julho 18, 2010


Con pasión!
“Lembrar é ato que potencializa as faculdades ativas do intelecto”, pensei, não sem algumas recordações que tanto me compeliam ao encalço quanto se mostrassem arredias, a fugir da rede das percepções imediatas. Rede que ainda preservava as primeiras notas de um piano melancólico, seguido pelos olhos de Irene que acompanhavam entre desolados e esperançosos a partida Benjamín. A cena era um quadro tênue, cuja imagem vaporosa sublimava à impermanência, qual um sonho que o tempo esconde, mas evocado pelas razões que a vida exige. Lo Secreto de Sus Ojos, premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, é mais uma pelicula do diretor argentino Juan José Campanella, quem mais uma vez faz ressaltar no ordinário as impressões de beleza que a arte empresta aos que a tem amizade. No drama, Ricardo Darín, que também trabalhou em outros filmes dirigidos por Campanella, é um funcionário público forense que, ao se aposentar, resolve escrever um romance, cujo mote envolve um crime abominável; se bem que apenas um pretexto para o reencontro consigo mesmo, outrora perdido nas furnas das recordações decantadas. E nessa busca que sempre descamba no autoconhecimento, Benjamín Espósito refaz os caminhos sinuosos da memória, ao longo dos quais revê, ou pela primeira vez experimenta, posto a lucidez que só o tempo revela, as misérias da ignorância humana, a redenção da sincera amizade e a gloria do amor correspondido. Excelente filme para quem sabe e se reconhece humano, ainda que, às vezes, esquecido de sua própria memória, mas sempre disposto à reconciliação de que a arte é especial mediadora.