sábado, agosto 28, 2010

Recordo-me. Era talvez um sábado, pois me recordo da atmosfera indolente daquela tarde abafada. Costumava sair para encontrar os amigos, os poucos que se dispunham aos debates insólitos, afiançados em vestígios de uma filosofia ingênua, mas inquieta. Fui encontrá-lo em frente ao prédio onde eu morava, próximo a uma subestação de energia. Dentro de seu carro, M. esperava-me absorto em cogitações intransponíveis à superficial curiosidade. Tinha seus olhos marejados e, precipitando algo convencional, supus a autopiedade que segue às desilusões amorosas. Aspirante a poeta, de quando em vez, M. inventava interditos, conflitos emuladores da vida, dizia, com o que atormentava de incertezas a união mais promissora. Perguntei-lhe da indisfarçável comoção e ainda sob estranho êxtase, apontou para a torre monumental e bizarra que sustentava diversos e ruidosos cabos de alta tensão. Ele, para o meu espanto, havia encontrado beleza naquilo que, para mim, era abominável. Sim, a beleza é força arrebatadora e, talvez, transcendental à mera aparência tenazmente defendida por Hípias, mas que ora se conciliava com o ideal estéril e incorruptível que prevalece às circunstâncias. Por um instante, temi a cegueira que acomete a canalha, Deus me perdoe a arrogância juvenil, pois teimava insensível às perturbações elaboradas no íntimo de quem a identifica, a beleza imanente, conhecida do sábio, invisível ao tolo.
(A T.)

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