terça-feira, setembro 28, 2010

Sobre o belo
Mais um dia nublado, e mesmo sob o céu cinzento as pessoas contorcem a face, não sei se aborrecidas - agora não mais pelo sol abrasador, mas talvez pela chuva que ameaça -, ou se apenas expressam o hábito que o tempo modela e, por fim, confere imunidade à consciência.
De fato, elas não parecem andar, mas se arrastam com o corpo desajeitado a claudicar passos que nem longe distantes daqueles ensaiados na primeira infância. Essas pessoas esqueceram-se belas algum dia e agora se limitam a suportar a existência, carregando consigo o corpo em franca corrupção, rumo à degenerescência infalível. Onde a beleza? Onde o gesto delicado de quem se conhece, cônscio de suas limitações, se bem que ansioso por superá-las. Onde os olhos altivos de ambições ao benigno progresso?
Há tristeza em alguns, preocupação em muitos e nos que restam o olhar vago, volúvel, a que se costuma atribuir alegria.
Penso no belo, ainda que simples, radiante. Pois é tal estado ou vibração radiosa que denuncia a genuína beleza. Por mais feia que a criatura pareça aos olhos corrompidos pela miopia vulgar, aquela intimamente conciliada e, portanto, em harmonia consigo mesma, irradia algo de arrebatador aos experimentados na observação humana, surpreendendo-os confusos e extasiados diante do aparentemente insondável.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Fui, por esses dias, questionado sobre o que faria às vésperas do fim do mundo. Após algum instante, a única coisa que me ocorreu foi o mar. Disseram-me que iriam ao cinema, mas acho improvável: seria uma despedida muito dolorosa, pensando melhor. Passaria meus últimos instantes no planeta diante do mar, imenso e interminável como o universo que me esperava. Só ao mar permitiria presenciar a minha provável agonia de ser ainda ignorante e limitado, o mar a que tudo acolhe e transmuta, indiferente à mesquinharia humana.
Oração: que Miles Davis e Dizzy Gillespie estejam entre os anjos do apocalipse.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Excerto recolhido de velha dedicatória escrita no frontispício de uma edição espanhola de Os Irmãos Karamazov, oferecida à senhorita T.
Amor! Confesso a estranheza do vocativo a que tantos devotam à dor. Então, não seria amor, pois não me aflige o peito, tampouco o sono me abandona o leito, por te adivinhar, quem sabe, no sonho acolhedor. E se te penso, quede a angústia, o pavor que a perda assola? O golpe sorrateiro, onde?, que consome dia afora. Talvez, não ame, enfim, e dócil apenas abrace o destino, seguro de que o próximo passo, eis que não mais sozinho, será o mais importante, pois ao teu lado.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Às vezes, penso na humanidade. Penso nessa enorme família, distante, algo que muita vez imponderável, mas que está lá, aqui, em todo lugar, apesar da não rara indiferença. Às vezes, penso nas crianças que não podem, que não têm, enquanto por uma insignificante fração de tempo não estou pensando em mim e nos problemas que crio não sem alguma arte. Cansado de mim, às vezes, volto a atenção para ela, e com que surpresa me esqueço e me reencontro, já outro, não mais a remoer mesquinharias, porquanto parte de algo maior. Encontro, assim, a importância que me diz respeito no outro, sem o qual me converteria, após a egolatria desoladora, em nada. Penso, quando de mim esqueço, o que não tenho feito, o auxílio omitido, o horror que me grita ao ouvido, ajude-me!, ajude-me! E quase que lamento, não fossem as injunções do progresso que me alijam da condição de vítima, por um instante. Às vezes, dela sinto profunda e intensa saudade. Onde a humanidade da qual sou filho e irmão? E quase choro para finalmente esquecê-la. Quem sabe um dia... não a abrace?, não a conforte para a minha paz?, num gesto simples e silente.