sábado, outubro 02, 2010

O anencéfalo
Teria nascido há trinta anos, sob o céu estrelado de uma noite morna nos confins do Mato Grosso do Sul. Chegou em silêncio, sem o choro que certifica a vida, e não fosse os olhos já abertos e o fôlego regular o julgariam morto. Mais tarde, teria um médico diagnosticado ao discreto horror dos pais uma criança sem cérebro. Cresceu, não obstante a expectativa contrária e adepta à morte iminente. Disse sua primeira palavra aos quinze anos. “Peixe”, ouviu sua mãe atônita o sussurro milagroso. Dois anos passaram e começava a mencionar algo inteligível, se bem que embaçado de mistério. A partir dos vinte e dois anos, começou a proferir diagnósticos confusos, conquanto desconcertantes, pois, ao que parecia, era-lhe possível conhecer a intimidade alheia. Não demorou e sabia das linhas que compunham as plantas dos pés de quem se dispunha ante ao seu olhar neutro. Revelava com palavras cirúrgicas os males da alma que o corpo aparentemente sadio escondia. Predizia a sorte e o infortúnio, as promessas de vida plena, a morte inarredável e insidiosa. Multidões passaram a visitá-lo em busca da verdade dita sem arrodeios ou prevenções. Alguns o evitavam receosos, outros ao ouvir seu nome faziam sinal da cruz e arrematavam um “valei-me!”. Ao fim da tarde e já cansado de atender a tantas pessoas, concluía as atividades diárias com o pedido costumeiro, quando era finalmente conduzido em sua cadeira de rodas e deixado diante da TV. Um dia, sem querer justificar-se, mas como se a empreender rara cortesia, esclareceu-me de seu hábito vespertino e da necessidade de manter a cabeça vazia de coisa alguma. Morreria poucos anos depois, consumido por complicações cardíacas.

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