sábado, outubro 21, 2006

Reencontro
Passamos pelos etílicos sem repousar os olhos nas garrafas que nos acenavam das prateleiras. Sabíamos o quanto eram persuasivas e tanto mais se a idade pesasse em rótulos já ásperos de esperar. Passamos, assim, sem arriscar às tentações que tomavam a atmosfera com sutil odor. “Etílico”, disse pensando imediatamente em Poe, talvez pelo célebre conto em cuja trama o vinho era pretexto. M. sugeriu o suco, ou foi C., não sei bem ao certo. Havíamos saciado a fome com alguns sanduíches de modo que o suco surgia como uma extravagância, uma celebração à inusitada amizade confirmada, então, pelo consenso: suco de maçã.
Encontrei M. na livraria. Era mais um dia como qualquer outro, ou seja, de modorra e resignação, suavizado pelo instinto de auto-preservação que tolera a vida sem explicações. Não obstante a cautela, encontramo-nos no dia seguinte. Fui apresentado a C. que manteve sobre mim um olhar perscrutador de quem perquire à alma o que se passa. E como não! Todos reagem assim a um estranho, a alguém que há pouco não houvera notícias senão pela promessa do acaso. C. tinha um ar de cigana romena, daquelas que sem maiores cerimônias buscam nas linhas das mãos as indiscrições da vida. Confesso que não temi, muito embora. Sentia-me mesmo à vontade, e não apenas com C., quem me inspirava confiança, mas com M., por quem já tinha estima. Por um instante pensei em negar tudo aquilo e recorrer à segurança anônima. Mas como poderia fazê-lo sem enfrentar o contentamento que surpreendia em meu íntimo? Deixei estar, pois, temendo os revezes da ingratidão.

Sem comentários: