quinta-feira, outubro 28, 2010

Anotação atribuída a um suposto J. Dubois, escrita no final do capítulo IV de uma edição de L`étranger, de Camus, Éditions Gallimard; recolhida e posta ao vernáculo por E. Basile.
Compartilho da mesma verdade de uma pedra e a leitura não me deixou mais sábio. Tampouco os títulos aqui amarrotados no bolso asseguram-me a sobrevivência da alma, conquanto me certifiquem qualidades surpreendentemente inúteis. Velho, não temo o homem, mas me constranjo sob o universo indiferente e ainda incompreensível. Quem de Euclides a Heisenberg se atreveu a alguma certeza? Não, o conhecimento humano a ignora, talvez porque impossível aos limites de um cérebro. A existência, pois, afigura-se ensaio inexaurível ao perfeccionista, quando não uma pantomima mal acabada e enfadonha ao transigente. Morrerei em breve e o cansaço será o consolo mais honesto. Cessarei encorajado pelas forças que me deixarão furtivamente, a pedir silêncio aos que ainda deliram com a imortalidade do corpo.

domingo, outubro 24, 2010

Um sonho. Ouvi alguém mencionar... seria uma quinta-feira e todos pareciam sair pelas ruas como se a espera de algo que certamente viria do céu. Alguns corriam em alegre euforia, outros vagavam com olhar absorto e sereno. Eu simplesmente acompanhava os acontecimentos, coagido por estranha força que me impedia os olhos cerrados ou a mente embotada, de tal maneira tudo desfilava incrível, pois sem o reflexo sensor da vigília. Assustaram-me os cavalos de pelagens ligeiramente azuis que corriam pelas ruas com seus olhos incandescentes a lembrar a danação prometida. Homens atiravam-se dos campanários, enquanto outros calculavam em ábacos rendimentos de ancestrais virtudes. A fé era compreendida sem o escândalo e a consciência não se deixava ofuscar pela túnica alva, nem constranger ante o hábito austero. As insatisfações estavam expostas e o impostor convertia-se insignificante, humilhado. Um sujeito oblongo ofereceu-me um automóvel, quis vendê-lo com a garantia de que o novo modelo não deixaria transparecer aos outros qualquer descontentamento pessoal de que porventura padecesse. Adiante, um grupo de macacos murmurava nostálgico seu tempo de humanidade. Tiranos de primitiva ordem exigiam amor dos que ali passavam, prometendo a quem os correspondesse escravidão e dor. Vi ainda um filho anunciar ao cuidado materno a verdade que chegaria indubitável e apócrifa. Quis gritar, mas também me era vedada a ânsia. Segurei um velho livro como se para sustentar o corpo cansado em pleno ar, no que as suas folhas converteram-se em cinzas, restando em mãos admiradas uma única e derradeira, onde e com remota caligrafia lia-se “amor”.

terça-feira, outubro 12, 2010


¡Chica, deja esto antes que te atrapen!(La Prensa de La Rioja, abril, 2002)

domingo, outubro 10, 2010


A semelhança era evidente e disse para mim mesmo: eis aí o Papai Noel. Para a minha eterna surpresa, pois não me entrego fácil à perfunctória evidência, acolheu em sua candidatura a ilustre alcunha. Bem assim o reencontrava, agora a confirmar minha irreverente assertiva, em horário eleitoral tão exíguo para sua ínclita figura. Não foi eleito, se bem conquistou um número de eleitores que superava a expectativa mais otimista, contando votos que ultrapassavam mesmo aqueles mais experimentados ao pleito. Fiquei algo desapontado, confesso, pois nutria desejo íntimo de tê-lo meu representante; e quem melhor senão o próprio Papai Noel?!, lamentava incompreensivo. Pressenti, por fração absurda de instante, a infância que emergia com seus caprichos insólitos. Infância simples e desorientada, que confia a própria vida ao primeiro estranho que lhe aparece amistoso. Será este desconhecido a fortaleza que manterá o ser frágil e sem autonomia longe do perigo sorrateiro; quem proverá à inabilidade dos primeiros anos; ele, pai zeloso, cicerone pronto ao auxílio nas primeiras incursões pela noite inconsciente, e de quem por fim nos desvencilhamos ao raiar do dia. Mas antes que sobrevenham as indeclináveis injunções naturais, muito é feito para que o arquétipo benevolente e protetor nos impinja a nódoa indelével da dependência que, assombrada pelo temor do desamparo, dá causa ao comportamento imaturo e leviano. Então, seguem alguns habituados no excesso ou ressentidos da ausência, a reclamar a presença paterna agora difusa no universo restrito de suas realizações. Por conta disso, apenas suponho, elege-se não o administrador, mas o pai, ainda que menos apto ao governo, pois único capaz de atender às extravagâncias de uma sociedade que se revela imatura, qual a criança indefesa, isenta de responsabilidades por desconhecer as razões que motivam a própria existência. Talvez não por diversos motivos também se crê na personalidade quer-se tão humana, conquanto munida de atributos incríveis, que cuida de cada indivíduo como se pessoalmente, numa prática incessante e subversora de leis que precedem a raça humana. De qualquer modo, a solução parece mais uma vez pertencer ao tempo e sua fábrica de monstros e anjos. Até o Natal!

sábado, outubro 02, 2010

O anencéfalo
Teria nascido há trinta anos, sob o céu estrelado de uma noite morna nos confins do Mato Grosso do Sul. Chegou em silêncio, sem o choro que certifica a vida, e não fosse os olhos já abertos e o fôlego regular o julgariam morto. Mais tarde, teria um médico diagnosticado ao discreto horror dos pais uma criança sem cérebro. Cresceu, não obstante a expectativa contrária e adepta à morte iminente. Disse sua primeira palavra aos quinze anos. “Peixe”, ouviu sua mãe atônita o sussurro milagroso. Dois anos passaram e começava a mencionar algo inteligível, se bem que embaçado de mistério. A partir dos vinte e dois anos, começou a proferir diagnósticos confusos, conquanto desconcertantes, pois, ao que parecia, era-lhe possível conhecer a intimidade alheia. Não demorou e sabia das linhas que compunham as plantas dos pés de quem se dispunha ante ao seu olhar neutro. Revelava com palavras cirúrgicas os males da alma que o corpo aparentemente sadio escondia. Predizia a sorte e o infortúnio, as promessas de vida plena, a morte inarredável e insidiosa. Multidões passaram a visitá-lo em busca da verdade dita sem arrodeios ou prevenções. Alguns o evitavam receosos, outros ao ouvir seu nome faziam sinal da cruz e arrematavam um “valei-me!”. Ao fim da tarde e já cansado de atender a tantas pessoas, concluía as atividades diárias com o pedido costumeiro, quando era finalmente conduzido em sua cadeira de rodas e deixado diante da TV. Um dia, sem querer justificar-se, mas como se a empreender rara cortesia, esclareceu-me de seu hábito vespertino e da necessidade de manter a cabeça vazia de coisa alguma. Morreria poucos anos depois, consumido por complicações cardíacas.