sábado, novembro 04, 2006

Ângela
Onde há certeza a dúvida paira disfarçada de súbita alegria. Vi Ângela anoitecer ao meu lado e, por um instante, era muito certo que a amava.
O ar-condicionado do apartamento vizinho vencia o aparente silêncio. Era um som contínuo que suavizava o temor da solidão. Enquanto ali soasse, contínuo, saberia que, bem próximo, alguém jaz.
Ângela jamais me disse amar. Algum receio quis estar entre mim e ela, é verdade, Ângela não deixou. Sufocou-o com hálito de promessa etílica.
Ângela dorme tão bem que assusta. Como alguém pode dormir tão perfeitamente?! Sua respiração é de uma tranqüilidade imune à minha presença, agora, nula.
Deixo Ângela sozinha para que resplandeça. Ângela só, iluminada; nunca vi ninguém assim e agradeço aos céus por ser o último a amá-la.
Ângela, quase não a ouço.
O ar-condicionado ressoa imenso, embora a distância; e o vizinho será que nos ouve? Lembra-se dele, Ângela? Agora, não mais.
O silêncio da cidade gotejada de carros na avenida. Posso mesmo te escutar por dentro.
O silêncio é a morte, Ângela. Mas você está aqui, ao meu lado, e lá fora os carros... Não estamos sós, percebe?
Descanse em paz, meu amor.